Biografia 2º C

 

  À Anna,



        Minha querida flor de lótus cujos olhos brilham mais que duas estrelas cadentes, te deixo o meu bem mais precioso, aquele cujos olhos não podem cobiçar, aquele cuja inveja não pode reinar. Para muitos, um simples papel. Para mim, minha alma e meu ranger de dentes. Para ti... Ah, para ti, eu imagino que irá ser demasiadamente importante! Não me assanho nem a te pedir que faças destas linhas mal datilografadas a tua fortaleza, porque com toda a certeza, o farás.
        Começo te dizendo que sinto muito por não poder ter aproveitado a tua vida contigo, mas que, de onde eu estivesse, sempre escrevia, procurando por notícias tuas. Porque o teu sorriso, minha doçura, é algo que eu jamais irei esquecer, nem depois que meu corpo pródromo apodrecer suave e inutilmente na terra úmida e fértil deste solo. Nem mesmo depois que meu espírito se elevar à outra dimensão. E o meu “sinto muito” neste momento não se torna mais uma justificativa, mas sim, um arrependimento profuso que se propagará aos quatro ventos, para sempre.
        Quero, ó beleza cujo mel se faz amargo, que me conheças inteiramente. Que saibas de todos os meus acertos e erros, e que saibas, principalmente, de minhas aflições, anseios, desesperos e amores.
        Sou o quarto filho de uma família cuja mãe deu à luz a doze, cujo pai era mecânico, e cuja vida não foi fácil. Passei anos lutando contra uma pobreza quase fúnebre, e me equilibrando para que meus estudos fossem adiante com tranqüilidade. E entre uma e outra escola pública, cheguei, aos dezesseis anos – e ainda de calças curtas -, na maior e melhor escola da Nova Zelândia, Nelson Collegiate School, com uma bolsa de estudos que fazia jus aos meus anos de esforço. O orgulho de meus pais se tornara incrível, e minha paixão pelas ciências já dava seus primeiros sinais de vida.
        Me esforcei tanto... tanto! A luz do dia era o limite para mim. Passava noites em claro com espessos livros debruçados à mesa, e uma luz de cabeceira inquieta. E veio a surpresa... Consegui uma vaga na Universidade da Nova Zelândia, no curso de Matemática e Ciências Físicas... Ah! Eu nem pensava nas conseqüências, e não me cabia analisar se eram boas ou ruins. A única coisa que me cabia naquele momento era arrumar minhas malas e pegar uma condução até a capital. Lembro-me bem dos últimos abraços que seu bisavô, James, presenteou ao meu então esguio corpo antes da partida. Lá estava ele, com o macacão suado, me ajudando a carregar as malas na estação. Ele puxou do bolso alguns trocados amassados e me disse para ir com Deus. Sua bisavó, Martha, não quis ir à estação, pois odiava despedidas, mas ainda assim, mandou-me um lanche e um agasalho. O choro tomou conta de mim durantes as doze horas de viagem. Um suplício...
        Mas a viagem não demorou tanto... E assim que meus sapatos cuidadosamente envernizados por minha mãe pisaram sobre o tenso chão da capital, conheci um mundo novo. Um mundo de novas cores, cheiros, sabores. Me encantei, mas também me sentia um tanto quanto desarticulado em meio àquela multidão de passos ansiosos. E me pus a andar, sob um sol escaldante, à procura de uma casa para ficar. Recordo-me de andar não muito pouco, e, me deparar com um casarão suntuoso, porém um tanto quanto mal cuidado, cuja placa era alusiva à um pensionato. Entrei, e avistei um balcão de mármore, com duas senhoras conversando. Uma delas, cerrava as unhas estupidamente vermelhas, e falava freneticamente. Perguntava por um quarto, e já acertava o preço das diárias, quando fitei ao longe uma beleza jamais vista. Não, eu nunca havia visto uma pele tão leitosa e cabelos tão negros. Foi neste momento, que conheci sua avó, delicada e imponente como o orvalho. Bela, e apaixonante! Pode parecer esdrúxulo, mas eu a amei desde o primeiro momento que a vi. E o sentimento oposto demonstrei por sua bisavó materna, a senhora que lixava as unhas, vulgo Senhora Newton. Meus dias de pensionato se dividiam minuciosamente entre meus estudos e minha amada.
        E por falar em estudos... Eis que chegou o grande dia! Entrei na sala ainda vazia, sentei, e abaixei a cabeça, esperando o início da aula. A surpresa não poderia ser maior. Conheci dois grandes amigos – daqueles que se faz para toda vida, entende? – e um excelente professor. À cada aula, parecia que aquela paixão que dava os primeiros sinais de vida, estava aflorada e começando a dar seus primeiros passos... Eu estava cada vez mais esfaimado por conhecimento!
Anos à fio se passaram, até que concluí meu curso, iniciei minha vida profissional, e juntamente com ela, minha vida matrimonial. O casamento com Georgina foi só uma conseqüência de uma vida de vitórias e de um amor cuja imensidão tornou-se inexplicável. Mas, algo faltava em mim. Sentia-me como um Bernardo sem anêmona marinha. Como um nada. Nem o nascimento de sua mãe, preciosidade, me fez feliz.
        Os primeiros passos da paixão tornavam-se agora, lentos e doentes... Eu tinha de fazer algo! Pus-me a passar semanas enfurnado em um laboratório a fim de realizar algum experimento que me satisfizesse. E como determinação e otimismo nunca me faltaram,  consegui. E foi trabalhando com química radioativa que me tornei o primeiro físico a ganhar o Prêmio Nobel da Química, em meados de 1908. Agora sim, eu parecia ser o mesmo Ernest de antes. Óbvio que eu não tinha o mesmo fôlego de meus dezesseis anos, mas ainda assim era o mesmo. Minha sede aumentava como gás em um champanhe, e minha fervorosidade pelo saber era tanta, que introduzi o modelo atômico na ciência, o que dizem ter sido meu maior feito.
        Trabalhei compulsivamente em vários locais, até que meu telefone tocou, soando bonança. Um de meus amigos, ao ligar, me convidou para auxilia-lo em uma investigação sobre um incidente com um famoso laboratório da época. Aceitei na hora, e como um pássaro migrador, lá fui eu, com Georgina e nossas malas, em direção à Inglaterra – mais precisamente à Universidade de Cambridge – ajudá-lo.
        Ajudando-o, passei a me tornar visado e cobiçado por muitas instituições de ensino. E já que a vida é uma faca de dois gumes, fui, também, cobiçado pelas Forças Armadas em meio à Primeira Guerra Mundial. Tive de ajuda-los em testes e pesquisas com bombas, detecção de submarinos, etc. Apesar montar esparrelas para homens o tempo todo – e de não gostar nem um pouco disso - , continuei no ofício enquanto precisaram da minha pessoa.
        E foram prêmios, condecorações, cerimônias... E em pouco tempo, eu já me tornara Barão Rutherford. Centenas de pessoas que eu nunca havia visto em toda a minha vida, conversavam e sorriam para mim. A princípio, eu gostava desse furor. Mas, com o tempo, a única coisa que eu realmente me prestava a fazer – e que realmente gostava – era ir à Royal Society (de onde me tornei presidente), local onde eu e vários companheiros dotados de conhecimento – e alguns bocados de sabedoria – debatíamos sobre avanços, fazíamos pesquisas, tomávamos decisões... Meu ego não inflava, porque apesar de saber que minhas descobertas foram suficientemente importantes para a humanidade, em minha consciência, a voz de meu pai ecoava, e rasgava minh’alma, dizendo que cada um faz o seu melhor. E eu o fiz, meu bem. Com toda certeza.
        Mas de que adiantaram títulos, se hoje, por causa deles, estou a esperar um nobre esculápio para que me tire tamanhas dores? Para que me livre a alma?
Quero que saibas, que de todos os meus feitos, coração, o maior deles, sem dúvida, não foi ter sido Ernest Rutherford. Mas sim, o Ernest, aquele que todos gostavam de conversar, de chorar nos ombros...  O Vô Ernest, aquele a quem tu sorrias, pedindo colo. O Ernest pai de Eileen, um cálice de cristal que se quebrou, mas cujo brilho jamais será ofuscado. O Ernest amante, apaixonante e apaixonado, o Ernest de Georgina.
        De todas as minhas alegrias, carrego comigo a maior: A de viver. Simples ou escandalosamente, viver. Porque foi vivendo que eu aprendi a ser mais humano, e não humano propriamente dito, mas humano com valores. Foi vivendo que eu aprendi, como dois e dois são quatro, que a vida é o bem mais precioso de qualquer ser que habite a imensidão azul chamada planeta Terra. Foi vivendo que eu aprendi a amar, Anna.
        E agora, em meu leito, não pretendo mais me delongar, paro por aqui, o anestésico está fazendo efeito em minhas veias sem nem ter sido aplicado. Seria esse um anestésico espiritual? Acho que chegou a minha hora.A hora de ser reduzido à pó. Mas não quero que te esqueças nunca, nem por um segundo, que o que é do homem, também é de Deus, e o que eu deixo para a humanidade, será sempre, por toda a eternidade, da humanidade.
        Estou desfalecendo, Anna... Desfalecendo... Meus olhos já estão cerrados antes mesmo de eu pedir. Reza para que eu vá em paz, Anna, reza...
 
 
    Um beijo enorme de quem tanto te ama,

 

 

        Ernest Rutherford.

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